"Obrigado", ele disse.
Foi como se um balde de água fria tivesse sido despejado da janelinha sorrateira do "Acarajé da Baiana" bem em cima de sua recém escovada cabeleira.
Podia ter sido um "ok, um beijo", ou "tá bom, beijinho", "tá, beijão", qualquer coisa que não fosse aquele "obrigado", seguido de constrangedores segundos de silêncio.
De repente a ficha caiu.
Ela não retornaria às 18 horas como combinado. E nem às 20h00. Talvez nunca mais.
É que ,de uns tempos pra cá, vinha se sentindo assim: dramática.
O "caminho do meio" árduamente aprendido se estreitava à sua vista. Agora só vislumbrava o "8" ou o "80". O tudo ou o nada. O frio ou o quente. Queria mais ou menos. Totais definidos. Aquele "obrigado", então, selava o fim.
Nem mais, nem menos, nesse caso: nada mais!
Tudo o que pode perceber da confusão dos seus sentimentos é que queria pegar o "cruzeiro" só por que o "cruzeiro" demoraria mais a levá-la para casa e queria ir pensando pelo caminho sobre que frase escreveria em sua mensagem de msn ao chegar. E também queria decidir o que fazer do lindo caderno do PEQUENO PRÍNCIPE que acabara de comprar na Livraria Travessa.
Será que o adotaria para "pícolos pensamentos" de alguma espécie ou o daria de presente de Natal?
Assim que chegou em casa correu ao quarto do filho e resgatou a antiga edição - capa dura -do PEQUENO PRÍNCIPE, de Antoine de Saint Exupéry ( afinal, não é que ele - seu filho -tivesse se identificado tanto assim com seu pequeno tesouro).
Pelo caminho, no ônibus, vinha relembrando trechos decorados muitos anos atrás:
- Quem és tu? perguntou o principezinho, És bem bonita!
- Sou uma raposa...
- Vem brincar comigo? Estou tão triste!
-Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda...
-Ah, desculpa. Que quer dizer cativar?
-Tu não és daqui, que procuras?
-Procuro os homens. Que quer dizer "cativar"?
-Os homens tem fuzis e caçam. É bem incômodo. Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras as galinhas?
-Não, eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- Ah, é uma coisa muito esquecida. Significa "criar laços"...
-Criar laços?
-Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto exatamente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo..."
"...mas se tu me cativas teremos necessidade um do outro..."
Digitou no msn: "mas se tu me cativas..."
Abriu o caderno. Escreveu:
Nome: Dulce
Curso: Sobrevivência no Asteróide 957
Estava um pouco triste.
Como o principezinho, lembrava-se de uma flor guardada em algum outro planeta.
Era assim que Dulce se sentia quando inaugurou o lindo caderno recheado de estrelinhas, principezinhos, flores e baobás...
Sentia-se distante. Presa em seu deserto...
Ela também deixara-se cativar por uma orgulhosa flor que habitava protegida por uma redoma de vidro, em outro asteróide qualquer, muitos anos luz de distância...